O Sonho (Reescrita)

sábado, 8 de outubro de 2022

Pinterest (Reprodução)

Foi no inverno de 2011. Eu havia convidado Helena, minha noiva, para passarmos o domingo no sítio de minha avó.

À tarde, logo após o farto almoço de Dona Ana, nos deitamos, em direções opostas, na grama do jardim em frente a casa. Apoiamos nossas cabeças sobre o ombro um do outro de modo que nossos rostos se avizinhavam o suficiente para que Helena, vez por outra, ao virar o seu, resvalasse carinhosamente a delicadeza delgada de seu nariz com um afago angelical na base da maçã de minha face. Sua mão direita pousava sobre o lado esquerdo de meu rosto, e corria a delicadeza de seus pequenos e finos dedos por entre os hirsutos fios de minha barba. E eu, da mesma forma, deslizava pacientemente alguns afagos pelos trilhos de veias e nervos de seu pescoço, do início deste até o dorso de sua orelha enquanto sentia o alento de sua respiração.

Era uma tarde ensolarada, mas, àquela hora do dia, o sol ocultava-se atrás do oitão da casa antiga e projetava uma longa e fresca sombra oblíqua onde estávamos. A amplidão celeste, como que tingida de um azul cerúleo muito intenso, recortava com nitidez ainda mais intensa as formas leves e movediças com as quais as nuvens pareciam se exibir.

— Essas nuvens parecem algodão doce — disse-me Helena com uma displicência proposital —. Um algodãozinho doce cairia bem agora depois de toda aquela carne assada que Dona Ana fez a gente comer —. E inesperadamente ela continuou: — Fico imaginando qual deve ser a sensação de tocar em uma nuvem…

Havia como que um certo encantamento em sua voz, inesperado, na última parte de seu comentário. Por um instante cessei o afago que fazia no dorso de sua orelha e afastei meu rosto do seu, virando-o em sua direção. Eu queria ver se aquele encanto de sua voz também pairava sobre seu rosto. A você, caro leitor, digo que nunca antes eu havia visto encanto tal como o que eu encontrara naquela cena. No mesmo instante e de modo inesperado, um breve fio de pensamento a respeito de como seria viver sem Helena — aquela com quem tantas vezes contemplei o céu — cruzou minha mente como um raio que corta o tempestivo céu de inverno numa brevidade quase instantânea, e depositou em meu rosto uma sombra taciturna. Naquele momento, pousei a cabeça de Helena sobre a maciez da grama e me pus sentado.

O céu parecia agora mais griz do que antes, de um azul opaco e triste. Uma briza fria sibilou tristemente por entre a copa das árvores, soprando algumas folhas secas de cajueiro, que descansavam numa porção de terra nua e fria ali perto, e trouxe umas nuvens tristonhas sobre o céu igualmente triste.

Eu a amava mais que tudo. Não conseguia imaginar minha vida ao lado de outra mulher que não fosse Helena. A luz daqueles olhos castanhos amorosamente me encarando com admiração… Aqueles longos cabelos ondulados se derramando por entre os dedos de minha mão enquanto a beijo… Deus! Como eu poderia viver sem Helena? Sinto como se ela fosse uma parte de mim perdida há muito tempo que finalmente voltou ao seu lugar.

Helena, com um olhar preocupado, também sentou-se e me encarou silente, buscando em meus olhos que amorosa, mas taciturnamente, a observavam, a razão de meu súbito levantar-se. Então meus olhos marejaram quando, frente a frente com ela, discerni mais distintamente as formas suaves de seu belo rosto. Me aproximei dela, envolvendo-a em meus braços de modo que o seu corpo pareceu uma breve extensão do meu, e senti como se nossas almas, despidas de todo medo, se confundissem num abraço infinito sobre o limiar do tempo e do espaço, onde o próprio tempo se curva diante da imperiosidade austera da eternidade.

— O que foi, amor? — Perguntou ela.

— Meu coração te escolheu e desde então vem te escolhendo todos os dias. Não quero te perder, Helena. Quero casar com você e te ter assim, envolta em meus braços, todos os dias de minha vida até o fim. Eu te amo.

Abracei Helena ainda mais forte. Senti sua respiração ofegar e seu coração acelerar, batendo forte contra o meu peito. Ela estremeceu em meus braços e, logo em seguida, neles descansou, como se minhas palavras trouxeram a ela conforto, e os meus braços, alguma segurança. Por mais terrível que fora aquele breve e perturbador pensamento, sentir a mulher dos meus sonhos envolta comigo nos liames daquele mútuo sentimento tranquilizou-me também.

***

Ainda abraçados, segurei sua mão direita contra o meu peito. Depois me pus de pé e, ainda segurando sua mão, eu a convidei para passear comigo pelo sítio:

— Há um lugar especial que quero te mostrar.

Helena se levantou, sacudiu o vestido e, apoiando-se em minha mão, calçou as sandálias. Eu a trouxe para junto de mim e ali a mantive, envolvendo sua cintura com o meu braço. Ela fez o mesmo com uma mão, e a outra ela pôs sobre a minha que abraçava sua cintura. Assim caminhamos meio trôpegos de amor pelo sítio.

O céu parecia novamente corado com um azul vivo, e as nuvens cinzentas já se dissipavam. Nas copas das árvores e na cumeeira da casa, cantavam alguns pássaros cujas raças não me arriscarei a dizer quais são, mas pareciam orquestrar, em gorjeios e trinados, sinfonias mais cinzeladas e polidas que os impecáveis allegros bethonianos. Uns bois satisfeitos de um vizinho mugiam em gratidão ao capim que pacientemente ruminavam e complementavam aquela sinfonia rural. Levei Helena a um cajueiro cercado das roseiras vermelhas e brancas de Dona Ana. Ali aquelas flores arfavam suavemente à brisa tropical que soprava, para cá e para lá, e delas espiralava-se, por todos os lados, a fragrância silvestre e doce das rosas. Quando fomos nos aproximando, Helena deixou-me de súbito, movida por seu amor à simplicidade das flores. Eu me escorei naquele velho cajueiro de muitas histórias e fui logo dizendo:

— Na infância, eu costumava vir aqui com alguns gibis roubados da biblioteca de meu tio para ler sentado nos galhos desse cajueiro, ao cheiro das rosas… — e reticenciei.

Novamente notei um encantamento de fascinação no rosto de minha noiva, agora pelas rosas, e me pus a observá-la. Assim continuei, ainda mais fascinado com aquela cena que a própria Helena com suas rosas, observando a mulher de meus sonhos que abaixava-se para cheirá-las.

Em um certo momento, Helena ergueu-se entre as roseiras, reclinando a cabeça em direção ao céu com os olhos fechados enquanto fazia uso de toda a sua capacidade torácica para inspirar profundamente aquela fragrância rosácea que a cercava. A brisa da tarde soprava obliquamente para frente o seu vestido e as longas ondulações de seus cabelos. Naquele instante esgueirei-me por entre as roseiras e, enquanto ela afastava o cabelo do rosto, prendendo-o atrás da orelha com aquela encantadora delicadeza feminina, a abracei, aproximando o meu rosto do seu. Agora olhávamos na mesma direção. Sua mão esquerda pousou sobre minha barba, e o seu perfume já não se distinguia do das rosas. Novamente ela estremeceu em meus braços. Suas mãos, então, entrelaçaram-se com as minhas que envolveram sua cintura e pousavam cruzadas sobre o abdômen de seu vestido. Ela reclinou a cabeça sobre o meu ombro. Mais uma vez me pareceu que o mundo era só nosso. Eu disse:

— Te amarei para sempre, Helena. E nada, a não ser a morte, nos separará.

— Eu sei, meu amor... — disse ela pressionando firmemente minhas mãos contra si mesma — eu sei.

Querendo sentir o seu perfume a própria Helena envolta em meus braços, fechei os olhos e dediquei toda atenção aos sentidos do tato e do olfato, os quais, naquele momento, me eram os sentidos mais preciosos que Deus poderia ter dado aos homens. Lamento a hora em que o fiz.

— Helena, eu… — dizia eu quando abri os olhos e dei com eles no teto pálido e embaciado do meu quarto escuro. Tudo não passou de um sonho numa madrugada fria e solitária.

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