Peter Paul Rubens - A reunião de Abraão e Melquisedeque, 1625 |
Quem escreve um livro cria um castelo, quem o lê mora nele.
(Monteiro Lobato)
Ler um livro e mergulhar na história que ele traz em suas páginas, para Monteiro Lobato era morar em um castelo construído pelo escritor da obra. No entanto, eu diria que ler um livro é visitar um castelo, pois quando se passa a morar em um lugar, por mais belo, mágico e surpreendente que seja, o costume tende a cegar os nossos olhos à sensibilidade da beleza que nos cerca.
Isso acontece pois, como eu já disse, "as artes [...], cujas obras buscam apresentar em nosso mundo o ideal de beleza, suprem momentaneamente [...] nossa necessidade estética, pois a beleza contida nas artes, assim como na natureza, é apenas uma sombra difusa da verdadeira e perfeita beleza, não conseguindo nos satisfazer de modo completo e perfeito." (Sobre necessidade humana de beleza)
Assim, tanto as artes visuais, especialmente as pictóricas, quanto a literatura compartilham desse mesmo pressuposto de serem visitadas, proporcionando a quem imerge em seus mundos a satisfação da necessidade estética através dos sentidos, causando emoções como a tristeza, a felicidade, a ansiedade, o sossego, etc.
A obra de Peter P. Rubens, 'A reunião de Abraão e Melquisedeque', de 1625, que ilustra esse ensaio é um claro exemplo disso. Nela é possível ver a cena bíblica de Abraão e seus homens recebendo das mão de Melquisedeque, rei de Salém, pão e vinho depois de voltarem de uma guerra.
Ao observamos esse belíssimo quadro, no centro da cena, vemos Abraão inclinado para frente com apenas um pé no segundo degrau da cena enquanto segura com as duas mãos alguns pães que ele acabara de receber das mão de Melquisedeque, a quem ele olha nos olhos de baixo para cima com uma olhar de seriedade, demonstrando humildade, respeito e submissão, conforme o texto bíblico de Hebreus:
Evidentemente, não há dúvida de que o inferior é abençoado pelo superior. (Hebreus 7:7 NAA)
O rei de Salém, por sua vez, apesar de estar um degrau acima de Abraão, trajado com suas vestes reais e rodeado pelos seus servos e servas, está com a mão direita erguida e a esquerda decaída, denotando um ar de cansaço pela idade que é fortalecido por sua expressão facial, dorso arqueado e cabelos brancos, mas que apesar do cansaço, demonstra misericórdia e preocupação com Abrão ao ponto de presentear-lhe com pão e vinho.
Na cena de Rubens ainda é possível notar alguns personagens secundários que trazem mais verossimilhança para a cena e consequentemente ainda mais emoção. Um desses personagens é a mulher de vermelho que está atrás de Melquisedeque. Com um meio sorriso no rosto e o cenho levemente franzido enquanto olha para o exército vitorioso, ela demonstra satisfação com a vitória conquistada por Abraão. Nesta parte do quadro, ainda é possível ver que aquela mulher está tirando pães de um cesto que está sobre os ombros de um outro servo enquanto ela mesma permanece com o rosto virado para os soldados, denotando uma certa pressa para entregar aos homens de Abraão o tão merecido pão e vinho que o seu senhor Melquisedeque lhes havia preparado.
Um outro personagem secundário que também configura verossimilhança à obra é o homem por trás de Abraão, em um dos últimos planos da cena. É possível vê-lo sem o elmo na cabeça, diferentemente dos três soldados que estão ao seu redor. Este personagem mantêm o olhar distante enquanto consternadamente leva um pão à boca, dando-nos a compreender a violência da batalha recém-vencida. Esse olhar perdido também é percebido na maioria dos demais homens de Abraão.
Todos esses detalhes que constituem a obra em apreço, nos transportam para dentro do quadro a ponto de sentirmos as mesmas emoções que as personagens. Nos humilhamos em agradecimento com Abraão, sentimos o cansaço do rei de Salém e a satisfação de sua serva e todas as demais emoções que caracterizam as personagens na cena e trazem mais verossimilhança à obra.
Do mesmo modo, uma literatura, quando bem escrita e carregada de verossimilhança, gerará no leitor o mesmo que obras como a de Rubens causam em seus espectadores: a descrição de um vulto, a priori insignificante, que mais tarde tem sua importância revelada; um objeto ordinário que mais tarde se torna a chave para a solução de um mistério; todos esses elementos que possuem uma importância na cena seja ela visual ou literárias, acrescentam verossimilhança à esta e geram nos apreciadores de tais obras emoções que o farão desejar retornar novamente ao castelo construído pelo artista-escritor.
Por tanto, cabe ao autor da obra erguer as paredes de seu castelo sabendo que cada tijolo, por menor que ele seja, não pode ser escolhido por acaso, mas com um propósito claro para o contexto da obra e que atribua alguma verossimilhança a esta e guie o visitante do castelo através das veredas das emoções de modo que ele deseje ali retornar, pois o ser humano foi criado para sentir e quando sentimos nossas emoções fluírem, nos satisfazemos. Seja a alegria de um final feliz, as lágrimas derramas por uma perda irreparável, a raiva de uma traição ou o medo do terror que espreita o personagem nas próximas linhas. Todos esses sentimentos nos conectam com a nossa própria humanidade e nos fazem saber que estamos vivos.
Parafraseando Monteiro Lobato, quem escreve um livro ou pinta um quadro cria um castelo, quem o lê ou o observa visita ele.
- quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
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