Libertado do meu eu

sábado, 21 de outubro de 2017


Fugindo arquejante pelas veredas obscuras do Bosque do Nevoeiro, caí de súbito prostrado com os joelhos em terra, após tropeçar em uma pedra, sustentando sobre as mãos calejadas pelo trabalho forçado nas minas de Pecado, o suserano, o peso dos meus ombros mortificados e achei-me novamente aprisionado por cadeias aos pés pelo sicário do maldito.

De cabeça baixa, esmagando com as pálpebras as lágrimas, quase ao ponto de dispersarem-se em vapor, que de tristeza percorriam lentamente meu lívido rosto e inebriavam meu coração por eu não ser capaz de fugir do meu cativeiro sem por meu algoz, vassalo do Suserano, ser novamente capturado, senti a dor do desespero diante de minha fragilidade.

Minutos depois, logo após verter rios de lágrimas, abri meus olhos avermelhados e, ainda prostrado, vi na poça que se formou diante de mim o reflexo daquele que considero o meu maior inimigo; das minas de cujo o senhor eu vinha fugindo. Aquela visão aterradora me fez cair para trás tamanho foi o susto, sentado no monturo, sujando as mãos com a terra úmida e enegrecida daquele bosque.

Devagar e tremendo tornei a olhar a poça: lá estava ele olhando de volta para mim com um sorriso escarnecedor e vitorioso. Meu coração começou a palpitar descompassadamente. As minhas mãos sujas começaram a destilar suor, o qual tornou-se em lama negra. O medo de tornar-me mais uma vez submisso aos desejos vis daquela criatura que estava diante de mim, instigados por seu senhor, dominou-me. Quando de repente uma voz doce e solene reverberou por todo o Bosque do Nevoeiro:

— Não tenha medo, meu filho. Eu já paguei o preço necessário por tua liberdade —. Duas coisas me ocorreram no mesmo instante: a primeira foi que aquela voz parecia vir de todos os cantos daquele bosque tenebroso, mas eu não via ninguém. A segunda coisa foi uma inexplicável mistura de sentimentos, além de uma forte esperança, que dominou todo o meu ser ao mesmo tempo: paz e temor, vergonha e consolo. Então perguntei:

— Quem é você?

— Eu sou o Cordeiro.

— Ó Cordeiro! —. Disse eu desacreditando da esperança recém sentida. — Estou irremediavelmente aprisionado à essas cadeias. Já tentei me libertar e fugir deste bosque tão horrível, mas sempre sou novamente aprisionado pelo sicário do senhor destas terras. Como um simples cordeiro pode me libertar?

— Eu Sou mais que um simples cordeiro, meu filho. Eu Sou o teu remidor. Eu Sou a tua Justiça —. Antes que a voz concluísse a pronúncia da palavra Justiça eu vi reverdecerem como mágica os galhos ressequidos das árvores daquele bosque sem vida e caminhar entre a ramaria recém enverdecida, um cordeiro de lã branquíssima manchado de sangue carmesim como se houvera sido gravemente ferido, porém não fraquejava. Ao passar por trás de uma árvore, o cordeiro se transformou em um homem ancião, vestido até os pés com uma roupa semelhante a uma bata de linho sem costura, branquíssima e cingido na altura dos peitos com um cinto de ouro. Sua cabeça e cabelos eram brancos como a lã do cordeiro que eu vira instantes antes. Do seu rosto fulgia uma luz de brilho intenso e constante. Seus olhos ardiam como chama de fogo e refletiam na poça de pranto que continuava diante de mim, até então antro do meu algoz. Os seus pés eram semelhantes a latão reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha, e se moviam na minha direção.

Ao me deparar com aquela visão, ao contrário da primeira, eu não tive medo, mas apesar disso eu não conseguia encara-lo por muito tempo, pois eu sentia como se os seus olhos penetrassem no mais profundo do meu âmago e sondassem as profundezas mais tenebrosas do meu ser, as quais nem eu mesmo seria capaz de discernir. Quando aquela figura se aproximou de mim eu curvei-me aos seus pés e, soluçando, disse:

— Afasta-te de mim, Senhor, pois sou um homem pecador! Estou tão mergulhado em tamanha desgraça e miséria que não sou digno de estar em tua presença.

Apesar de eu reconhecer em meu coração que eu não tinha condições de estar na presença do Ancião, algo dentro de mim me impulsionava para mais perto de sua presença e fazia com que eu me apresentasse diante dele com todos os meus pecados afim de receber a sua misericórdia, mesmo sabendo que eu era digno do seu juízo e condenação.

Parado diante de mim enquanto eu permanecia prostrado, clamando por misericórdia, eu vi o recorte da sombra do seu braço direito que erguia-se ser projetada no chão, devido a luz emanente do seu rosto, ao meu lado esquerdo. "Será o meu fim.", pensei, enquanto eu fechava os olhos com toda a força esperando um golpe de juízo que me arremataria a vida.

— Não pense isso, meu filho —. Disse-me o Ancião colocando sua destra em meu ombro esquerdo. — Eu Sou o teu remidor. Eu Sou a tua Justiça —. Então eu abri os olhos ainda com a cabeça curvada e não vi mais a poça de lágrimas que estava diante de mim, nem a terra negra debaixo dos meus joelhos ou a lama nas minhas mãos. O que os meus olhos passaram a enxergar era algo esplendidamente magnífico; algo nunca antes visto por mim ou talvez por olho humano algum: debaixo de mim havia uma superfície polida, mas que não chegava a ser como um espelho, e de um amarelo diferente de tudo o que eu já vi, na qual eu divisei novamente, porém agora ofuscado, o reflexo do meu maior inimigo, cujo sorriso escarnecedor havia sido desfeito, agora preso em um madeiro sem poder sair.

— Levante-se, meu filho —. Disse-me o Ancião. — Você agora é um homem livre —. Nesse instante eu notei que as minhas cadeias haviam desaparecido e com a sua ajuda eu me ergui — Primeiro o joelho direito e depois o esquerdo. — até que eu me achei de pé frente a frente com o Ancião. Foi então que eu olhei à minha volta e percebi que aquela superfície dourada era na verdade ouro puro. Estávamos em pé sobre um único bloco quadrado de tijolo de ouro de muitos outros que, lado a lado, se estendiam por muitos e muitos quilômetros do ocidente em direção ao oriente, formando um caminho entre várias montanhas, bosques e vales repletos de diversas espécies de plantas e de animais que andavam por entre as árvores ou voavam pelo céu límpido e azul, e terminava ao pé de uma grande e fortificada muralha construída em jaspe a qual possuía três grandes portões de pérola (pelo menos do lado oriental).

"Que visão magnífica", eu pensei. — Está é agora a sua nova morada —. Disse-me o Ancião apontando para os portões que se abriam. — E estes são os seus concidadãos —. Assinalou ainda virando-se para o ocidente, de onde vinha uma grande multidão inumerável, festejando com músicas e danças pelo caminho em que estávamos.

Apesar de eu não ser mais uma criança, senti-me como uma e segurei a mão esquerda do Ancião e juntamente com a multidão entramos na Grande Cidade de Ouro com um gozo profundo na alma e no coração ao ponto de tudo aquilo parecer-nos um sonho.

Mesmo tendo decorrido muitos milhares de anos desde então, aqui temos vivido e nesta cidade não existe cemitério porque não há morte, não existe cárcere porque não há transgressão, não existe hospital porque não há doença, não existe noite e até o sol não se faz necessário porque o Grande Rei nos ilumina com a luz que emana do seu trono e não existe fome porque nos alimentamos com os frutos da Grande Árvore que encontra-se no meio da praça de ouro da Grande Cidade de Ouro e contemplamos a beleza e a glória do Grande Rei.

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