A cidade dos homens

sábado, 3 de março de 2018


Em um vale profundo, cercado ao norte, ao sul e ao leste por altas montanhas, as quais são humanamente intransponíveis, e ao oeste, onde tudo era plano, por um denso nevoeiro, um manto de negras nuvens tempestuosas cobria toda a sua extensão, impedindo que a luz do sol chegasse forte ao fundo daquele vale, onde estava a cidade dos homens.

Naquela nimbosa cidade em ruinas, seus moradores viviam amedrontados com a forte tempestade que constantemente a assolava, pois, por mais que se esforçassem para construir casas, nunca as conseguiam concluir sem que o temporal se intensificasse e as devastasse, matando, na maioria das vezes, seus edificadores e trazendo ainda mais temor sobre a população.

O máximo que as pessoas conseguiam fazer era um débil guarda-chuva com gravetos secos e folhas de figueira, o qual não durava mais que alguns minutos debaixo do intenso temporal, porém ninguém enxergava sua ineficácia, ou pelo menos não a admitiam, afim de se passarem por sábios.

Apesar da condição temerosa e deplorável em que aqueles moradores viviam, ninguém tentava escapar dali, pois havia um momento em que eles se esqueciam de sua situação e sentiam-se confortados.

De tempos em tempos, um canto doce e suave — o mais belo que o leitor poderia imaginar —, surgia ao ocidente, vindo do denso nevoeiro, e tomava toda a cidade, deixando seus moradores em uma espécie de êxtase. Era como se o barulho da chuva e dos raios que iluminavam o enegrecido céu silenciasse diante daquele canto e não houvesse mais nada que as pessoas desejassem a não ser satisfazerem o desejo de ouvi-lo perpetuamente.

Para isso, sempre que ouviam o cântico, elas caminhavam, em transe, em direção ao ocidente. Os que estavam mais próximos daquela melodia ocidental, entravam primeiro na densa névoa antes que ela cessasse, para nunca mais serem vistos e o medo da tempestade tomasse conta de todos novamente.

Por muito tempo, eu vaguei amedrontado pelas ruas daquela cidade, buscando, sem saber ao certo como, uma forma de fugir daquela tempestade, levando comigo apenas o meu pequeno guarda-chuva improvisado, o qual logo quebrava-se, frustrando as minhas desesperadas tentativas de me proteger.

Certo dia, quando o temporal parecia ter se intensificado, eu seguia minha desorientada peregrinação por entre as ruínas daquela cidade, tentando resguardar-me da forte tempestade com a frágil obra das minhas mãos, até que as folhas que restavam rasgaram-se e novamente achei-me completamente vulnerável aos raios que cortavam o firmamento — como se aquelas folhas fossem realmente capazes de proteger-me.

Sem saber para onde fugir da tempestade que encharcava os meus ossos, cai de joelhos sobre uma poça de água completamente desfalecido pela desesperança que me abatera, pois eu já estava cansado de lutar contra o que eu não podia vencer.

Enquanto eu lastimava profundamente a minha miserabilidade que se desnudou diante dos meus olhos após eu perceber que, não importando o que quer que eu fizesse, eu nunca seria capaz de proteger-me daquele temporal, a melodia ocidental soou tenuemente pela cidade e foi gradualmente aumentando até que todos os habitantes da cidade estivem em êxtase, exceto um.

Pela primeira vez, apesar da forte atração que aquele canto exercia sobre mim, eu pude ouvi-lo paralelamente ao barulho da tempestade, a qual soou para mim muito mais terrível, porém, estranhamente agradável, e aquele canto, repugnante.

Com os olhos fechados, eu permaneci prostrado sob a chuva por algum tempo, enquanto ela dessalgava as lágrimas que, de assombro e repugnância, percorriam o meu rosto, desejando permanecer sob à luz dos trovões e ser por eles consumido, se os céus não se apiedassem de mim, que viver eternamente a inútil tentativa de fugir daquela tempestade, sendo atraído por aquela repugnante melodia.

Enquanto eu me rendia à ira da tempestade, cansado da mediocridade da minha vida, de modo repentino, a chuva estranhamente parou de cair, apesar de eu ainda poder ouvi-la. Então, eu abri os olhos e vi que se precipitavam sobre o lodaçal, no qual eu estava, grandes gotas carmesins, as quais logo enrubesceram-no. Era sangue.

— Levanta-te, meu filho — exclamou uma solene voz.

Ergui a cabeça para ver quem falava comigo, e vi, à minha esquerda, um ancião completamente molhado pela chuva, segurando sobre mim, com a sua destra que destilava grandes gotas de sangue, um guarda-chuva de pele de cordeiro, tingido de vermelho carmesim, que comportava apenas uma pessoa.

O velho não possuía qualquer beleza que me motivasse a desejar sua companhia, porém ele tinha um olhar tão profundo e repleto de ternura que rapidamente fez desaparecer de mim a desesperança que me abatera, e eu pude perceber que, sob aquele guarda-chuva, eu estava, enfim, protegido.

— Quem tu és? — Perguntei.

— Eu sou aquele que te guardará da fúria desta tempestade e te levará à cidade celeste — respondeu-me o misterioso velho estendendo sua mão esquerda para mim —. Levanta-te.

Ao ouvir o nome da cidade para a qual o ancião me levaria, tive uma convicção interna de que esse era o destino que, sem saber, eu busquei por muito tempo, vagando desorientado pelas ruas da cidade dos homens.

Segurei em sua mão e ele levantou-me do charco.

— Desde sempre eu acompanhei o teu calvário por estas ruas — disse-me o ancião —, e vi as tuas frustradas tentativas de resguardar-se desta tempestade que fustiga este lugar.

— Se viste o que passei, por que não me socorreste antes? — Perguntei ressentido.

— Porque tu estavas confiado em tuas próprias obras para proteger-te deste temporal. Só depois que percebeste a vaidade de teus esforços para salvar-te é que eu pude aproximar-me de ti, porque, por mais que desejasse, eu não poderia ajudar a quem não acredita que precisa de ajuda.

Senti-me constrangido, pois, de fato, eu cria que o guarda-chuva que eu fizera seria capaz de proteger-me daquele incessante temporal.

— Vem e segue-me — disse-me o ancião virando-se em direção ao oriente.

— Para lá só há montanhas. Montanhas impossíveis de serem transpostas.

— Apenas siga-me.

Mesmo sem enxergar qualquer caminho do lado oriental da cidade que nos tirasse dali, decidi confiar naquele velho desconhecido e iniciamos, então, a caminhada. Foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.

Durante a peregrinação eu disse:

— Saia da chuva. Com esforço este guarda-chuva comportará nós dois.

— Este guarda-chuva só comporta uma pessoa — respondeu-me o velho —. Para que tu te resguardes da tempestade é necessário que ela caia sobre mim.

Ao ouvir aquelas palavras senti-me ainda mais constrangido e o meu coração se enterneceu.

"Como pode alguém se sacrificar dessa forma por um completo desconhecido?", pensei eu. O que me deixou ainda mais surpreendido foram suas palavras após eu concluir esse pensamento:

— Tu não és um desconhecido — disse ao olhar para mim —. Eu te conheci quando tu ainda não existias.

Naquele momento eu percebi que todo o meu ser estava desnudado diante daquela excêntrica figura e que, de alguma forma, não haveria nada sobre mim que ele não conhecesse, até mesmo aquilo que nem eu conhecia.

Então eu disse:

— Deixa-me, então, ao menos segurar este guarda-chuva para que não te afadigues.

O ancião respondeu:

— Se tu levares este guarda-chuva, não conseguirás dar um único passo sem que o deixes cair, e estarás novamente sob a ira desta tempestade.

A partir daí o meu coração, enfim, encontrou sossego naquele temporal, pois tive certeza que o ancião me conhecia mais do que eu mesmo e que só ele poderia segurar aquele guarda-chuva e me tirar daquele terrível lugar, porém, eu ainda podia ouvir o canto ocidental que muito me atraia, apesar do enojamento que eu sentia dele.

— Que canto é esse que ouço, vindo do ocidente? — Perguntei ao velho enquanto ouvia aquele som e via as pessoas caminharem em direção a ele, também desejoso que fossemos para o ocidente.

— Se fores para lá, acompanhando a multidão, não poderás ir para a cidade celeste.

— O que há além daquele nevoeiro?

— Um banquete do qual tu não te fartarás, se fores para lá.

Apesar da sedução daquele belo canto, preferi seguir o velho, rumo ao oriente, pois desde que eu o havia conhecido, jamais senti tamanho regozijo em minha alma, e a tempestade não mais me fustigava.

Enquanto caminhávamos para o oriente, sentia-me como um pequeno peixe nadando contra a correnteza, pois toda a cidade caminhava absorta em direção ao ocidente, para o nevoeiro.

Em certo momento, durante a caminhada, eu encontrei meus pais que vinham em minha direção com algumas folhas rasgadas de figueira sobre a cabeça. Eu os abordei:

— Pai! Mãe! Não vão para o ocidente. Lá não é o nosso lugar. Precisamos ir para o oriente, para a cidade celeste!

— Filho! — Exclamou minha mãe com um olhar distante —. Nós estamos indo para o ocidente. É lá que repousaremos desta tempestade. Vamos! Antes que esse belo canto cesse e percamos esta bela oportunidade.

— Não, mãe! Só encontraremos repouso para esta tempestade se formos para o oriente, para a cidade celeste!

Quando percebi que nada do que eu dissesse iria convencê-los de seu erro, eu olhei desesperadamente para o ancião e implorei:

— Salve-os também! Por favor, salve-os!

— Com quem você está falando, filho? — Perguntaram meus pais.

— Com ele — respondi apontando para o velho homem —. Ele me salvou da ira da tempestade e agora está me levando para a cidade celeste.

— Vamos querida, nosso filho está louco — disse meu pai com um olhar tão distante quanto o da minha mãe —. Deixe-o aí.

Sem falar mais nada, os dois seguiram em direção ao nevoeiro e eu fiquei profundamente entristecido por não ter conseguido convence-los de seu erro, porém, ainda mais atônito por eles não terem visto que o ancião estava comigo, então novamente perguntei:

— Afinal, quem tu és?

— Eu sou o que sou — respondeu o misterioso ancião.

De repente, do rosto daquele homem começou a fugir uma luz que brilhou mais forte que o sol do meio-dia, ofuscando-me a vista. Quando tornei a enxergar novamente, encontrei-me numa planície localizada no cume de uma alta montanha, rodeada por um mar de nuvens enegrecidas que, a oeste, onde estava o vale da cidade dos homens, recobriam toda aquela cidade, e notei que as minhas roupas haviam sido misteriosamente embranquecidas.

Daquela altura, quando olhei para o ocidente, eu pude, enfim, entender o porquê das palavras do misterioso ancião ao exortar-me a não me deixar seduzir pelo canto ocidental.

Além do nevoeiro, havia um precipício ainda mais profundo que o vale, inundado por um mar de lava fervente que se perdia no horizonte curvilíneo, de onde emergia uma fera de sete cabeças: era a Besta-devoradora-de-homens, a qual cantava afim de atrair os moradores da cidade e banquetear-se deles.

Ao ver o fim que espreitava as pessoas que se deixavam seduzir pelo canto mortal da fera, entristeci-me profundamente, pois eu sabia que meus pais tinham tomado tal destino.

Logo após aquela triste descoberta, olhei em direção ao centro da planície, e a profunda tristeza do meu coração deu lugar a uma grande alegria ao contemplar aquilo que eu, sem saber, desejei por toda a vida. Era a cidade celeste que reluzia como ouro diante dos meus olhos, ladeada por um alto muro com um imenso portão que se abria à medida que eu caminhava em direção a ele.

Eu não saberia descrever a palaciosa arquitetura daquela cidade. Deixarei que o leitor oportunamente a contemple com seus próprios olhos. Assim espero. Direi apenas o que aconteceu em seguida.

Ao entrar na cidade, os portões fecharam-se atrás de mim e um cordeiro de lã branquíssima aproximou-se e, sem emitir qualquer som, disse-me:

— Vês agora porque procuravas o que não sabias e o não encontravas? Tu procuravas por esta cidade, mas nela só entrarão os que reconhecerem que não são dignos de estarem aqui, para que nesta cidade não haja mal algum.

Enquanto o cordeiro falava comigo, aproximaram-se dele, dois seres vestidos de branco, tal como eu, para os quais olhei por alguns segundos, até que o meu coração se alegrou ainda mais. Eram os meus pais que haviam entrado na cidade celeste.

— Pai! Mãe! — Exclamei enquanto corri para abraçá-los —. Como vós conseguistes chegar aqui? Eu pensei que...

— Da mesma forma que tu, meu filho — disse minha mãe interrompendo-me com um beijo.

— Antes que entrássemos no nevoeiro, aquele canto mortal cessou, sobrevindo-nos novamente o temor da tempestade — completou meu pai —, então refletimos sobre as palavras que tu nos disseste acerca do ancião e deste lugar, as quais nos inquietaram profundamente, até que eu e tua mãe fomos convencidos da nossa incapacidade de vencer aquele temporal, aproximando-se de nós, logo em seguida, o ancião, trazendo consigo dois guarda-chuvas vermelhos.

— Sigam-me — disse o cordeiro.

Seguimos o cordeiro até o centro da cidade, onde havia um majestoso trono, no qual ele subiu e deitou-se. Enquanto eu atentamente observava aquela cena, uma revoada de pombos brancos voou entre nós e o cordeiro, ocultando-o aos nossos olhos.

Passado aquele ninhal, o cordeiro havia desaparecido e em seu lugar estava sentado o velho que me ajudara na cidade dos homens e levara-me até a cidade celeste trajado com vestes reais e com uma coroa repleta de pedras preciosas em sua cabeça.

Ao ver aquela real figura, ainda mais constrangido fiquei, pois não foi apenas um velho pobre que se sacrificou por mim, ajudando-me, foi um grande e poderoso rei que deixou a glória do seu trono para salvar da condenada cidade dos homens o mais miserável de todos os seus habitantes.

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